sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Depoimento de uma cuidadora de paciente com Alzheimer

Depoimento de Maria Inês Duarte – Juiz de Fora - MG, que orgulhosamente permitiu a divulgação de sua identidade, para tentar ajudar outras pessoas.


Briguei muito comigo mesma, porque escrever sobre a doença que Dr. Alzheimer esclareceu é como mexer na ferida quando está quase fechando. Como todos os fatos óbvios só se tornam óbvios quando nos damos conta que era inevitável, aqui estou eu, faz dias, escrevendo e, como eu mesma falo, bordando as letras para que meus sentimentos se acomodem e eu consiga colocar as idéias em ordem.
Cinco anos faz que comecei a estudar sobre a doença e hoje, dia trinta e um de agosto de dois mil e três, completam oito meses que minha mãe está comigo em Juiz de Fora. A intenção de escrever não é só para alívio da minha alma, mas para que outros possam se beneficiar com a minha experiência.
Nesse tempo que estou envolvida com a doença, quanto mais eu ouço, mais leio ou assisto a documentários, maior minha adaptação ao meu novo mundo. Já disse antes que me sinto pega por uma nave de outro planeta e ainda não sei bem para onde vou e como chegar, mas com certeza minha mãe está comigo. Ela não tem condições de se manter a não ser com alguém que a ajude e, por hora, sou eu. Quem sabe escrevendo ajudo outros cuidadores a entender mais um pouco sobre a doença de Alzheimer?
As revistas e programas de saúde têm tentado explicar a doença para auxiliar de todas as maneiras a família envolvida. Dificilmente conseguem, pois não vivem os problemas fora do consultório, na sua pele. Na verdade, o que não se sente, supõe-se.
A doença é sinistra, como diria meu aluno adolescente. Ela faz com que o paciente perca a memória e tendo momentos de lucidez e afirmações convictas, poucos acreditam que esteja doente. Feliz do paciente que em tempo tem ao seu lado alguém que descobre e consegue acreditar que ele está doente.
O cérebro vai aos poucos morrendo, mas não avisa qual parte vai morrer e nem quando. Por isso, você nunca sabe como estará o paciente. Afinal ele não tem noção da doença, tem sensação de que acontece alguma coisa estranha com ele, sem saber discernir. Percebe só que não consegue resolver coisas simples, quanto mais as complexas. Não há cognição constante e aí começa o dilema.
Alguns familiares acreditam que não há o que fazer, contar a verdade é o melhor, outros acham que é brincadeira do paciente, perdem a paciência com as coisas tolas e, muitas vezes, constrangedoras que o paciente faz. E esse coitado sente, chora, se envergonha sem saber resolver nada, fica envergonhado, acuado como criança pequena ou como se estivesse sendo humilhado.
Minha mãe mora desde dezembro em Juiz de Fora, mas todos os dias acha que veio do Rio, lugar onde morou muitos anos. Como vai e volta para o Rio só a cabecinha dela sabe. Detalhe é que ela nunca mais foi ao Rio, desde dezembro. Aprecia artes e sempre vamos para exposições e ao cinema, lugares onde possa apreciar boa música ou bons livros e, como ainda reconhece algumas amigas minhas, sempre que tenho oportunidade, ela está com elas. De uma hora para outra não sabe onde foi e nem lembra de alguma coisa fundamental. Repentinamente surpreende com alguma observação lúcida a respeito de alguma coisa que viu, desarmando qualquer cientista.
Fico geralmente esperando para responder de tal maneira que não a confunda e me convenço da história que conto, mesmo que seja muito fora da realidade, mas com coerência. Não a contrario nunca e sempre procuro tratá-la como uma criança que supervisionada pode até ajudar em algumas tarefas. Logo que veio para Juiz de Fora minha amiga, duvidando da doença, acabou se distraindo e, numa ocasião em que estava com minha mãe, deixou que ela usasse o fogão. Mamãe ligou todas as bocas sem usar fósforo e saiu da cozinha como se nada tivesse feito. Os anjos da guarda nesse dia trabalharam exaustivamente.
Quando o médico me disse que mamãe estava mudada e eu já havia percebido o temperamento completamente diferente, foi como se eu tivesse recebido uma notícia boa. É como se tivesse sido um presente, pois na verdade de brava, mamãe passava para meiga, só que com Alzheimer... Como um feitiço da história infantil, sem possibilidades do príncipe aparecer e salvar a mocinha.
Desde o início constatei que a cura não existe ainda, que até o final da doença estará sem conhecer as pessoas, em cima de uma cama, talvez vegetando.
Convivo com um medo tão grande - de não dar conta e de deixar minha mãe sem assistência - que a coragem cada vez aumenta mais. Brigando todos os dias para vencer esse medo, eu até agora tenho vencido. Mas na luta contra o dito cujo, eu conto com meu marido, meus filhos e minha irmã que mora no exterior, mas sempre está me apoiando.
Entrei para o grupo de cuidadores de pacientes com Alzheimer, reunimo-nos freqüentemente recebendo orientação dos médicos, psicólogos e outros profissionais interessados na causa. Fundamental para que nós, cuidadores, sobrevivamos. Em Juiz de Fora, uma vez por mês temos o encontro e, semanalmente, há na Universidade Federal de Juiz de Fora, na faculdade de Fisioterapia, um grupo nos orientando junto à faculdade de Psicologia.
Existe paciente que fica o oposto de minha mãe e a agressividade é tão grande que agride fisicamente inclusive a pessoa que cuida dele. Celso, portador de Alzheimer, algumas vezes em seus delírios tem certeza de que a mulher dele não é quem cuida dele, pede para que vá embora da casa e a agride dizendo que ela é estranha! Eu vejo o quanto a esposa dele sofre...
Tem outro paciente que não reconhece mais os amigos. Acredita que todos o perseguem, chegando ao cúmulo de acreditar que alguns o matarão ou roubarão seu dinheiro. Deixa alguns da própria família sem poder entrar na sua casa e sofre muito com a possibilidade de ser traído pelos familiares. São delírios que o paciente pode ter e que muitas vezes não tendo assistência médica, passam a ser taxados de malucos.
Muito triste para nós lúcidos que convivemos com eles, mas pior é conviver com os familiares que por motivo ainda não identificado por mim, ignoram a doença e deixam o paciente completamente sozinho. Caso de polícia, segundo um amigo meu. E é.
Mamãe tem fisioterapia e terapeuta ocupacional três vezes por semana e toma os medicamentos necessários para que tenha momentos de distração e de tratamento. Sei o quanto ela gosta de música e sempre recomendo os CDs para que ela ouça na hora que o profissional da saúde está com ela. Também já fez trabalhos manuais e pinturas, assim a terapeuta ocupacional diversifica as atividades e proporciona momentos agradáveis.
Algum proveito há que se tirar dessa situação e acredito que estou entendendo o recado que me deram. De uma hora para outra você pode adoecer, ficar nas mãos de outros, podendo ou não ser tratada com dignidade.
Por isso, enquanto somos lúcidos devemos aproveitar o dia para sermos e fazermos os outros felizes. Mamãe foi pega de calça curta, como se diz na linguagem popular, sem chance de desfazer mal entendidos, de dizer que amava as pessoas, e de ser feliz. Passou muitos anos brigando com a própria sombra e, embora sendo uma pessoa de boa índole e bom caráter, alguma coisa aconteceu, numa hora qualquer da sua vida, que embora ela não aceitasse, não soube dar marcha ré e recomeçar. Ela perdeu a oportunidade de ter sido feliz enquanto lúcida... Agora o mundo para ela é cor de rosa, vive num mundo de faz de conta, onde todos são bons e ela é muito feliz. Se depender de mim, ela não sai mais desse mundo do faz de conta e quando estiver em outro plano saberá que tudo que fiz foi por amor, mesmo sem jamais termos tido a oportunidade, enquanto lúcida, de dizermos isso uma à outra.

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